terça-feira, 4 de maio de 2010

não era um bicho de sete cabeças, mas não era de uma só.

07:00 a.m. mais ou menos, estávamos no Bali Hai de Piçarras, eu, Renata H., Daniel Alexandre e Bruno Vivan, conhecido mundialmente como "Padre".
Eu fui em direção ao mar, naquela manhã ensolarada como nunca vista por meus olhos numa praia frequentada por mim desde os meus 02 anos de idade, manhã linda era aquela, em que as ondas vinham beijar a praia, e a lua dava lugar ao sol, radiante, ardente, como só ele.
Tirei minhas sandálias salto 15, molhei meus pés no mar e pedi aos céus que tudo fosse novo, diferente e melhor. Como a maioria das pessoas fazem, creio eu.
Aquela manhã nunca deixará de existir, nunca deixará de ser lembrada, pois só eu sei o que senti, quando vi toda aquela beleza em ótimas companhias, nossas vidas de boêmios, com cigarros e bebidas. Rindo à toa, deixando identidades voarem e beijando lábios. Sentindo a areia, e os arrepios que o vento fazia questão de nos trazer.
Fomos embora, cada um para seus lares, eu fiquei com Renata na casa dos tios dela, voltamos a Floripa no mesmo dia, às nove da manhã. Fiquei babando e dormindo a viagem inteira. Imóvel.
Passaram-se alguns dias e estando em casa, fui parar em uma clínica psiquiátrica em Florianópolis, São José, Clinica São José, clinica psiquiatrica de São José.
É.
Eu fui. No dia 09 de Janeiro.
Eu estava dopada nos primeiros dias, não me lembrava de nada. Não me lembro de nada até hoje.
Esquizofrênicos. Bipolares. Dependentes químicos e depressivos. Tudo isso em um único lugar.
Nos dois primeiros dias eu fiquei no apartamento 12(é assim que eles chamam, ao invés de falar quarto). Não tinha banheiro no quarto, e eu tinha de repartir um banheiro com mais alguém, não me lembro quem. No outro dia me mudaram para o apartamento 21, quarto grande, banheiro próprio, uma beleza, no mesmo dia entrou na clínica uma loira, baixinha, era Déborah Blando. Sim, aquela cantora, cantora é ainda.
Os homens ficavam separados das mulheres, eles lá e nós cá. Os exercícios físicos eram praticados apenas com um enfermeiro junto e nunca mulher com homem, o que eu achava tolice. Todos os dias conversava com psicólogos, tomava remédios nos horários, fazia terapia ocupacional... passar o tempo.
Eu escrevia cartas, escrevia textos, eu fumava.
Uma coisa bem engraçada é que tinha lugar certo pra se fumar, um quadrado de mais ou menos 5mx5m, com um banco de madeira. Os cigarros tinham horários certos para serem pegos, das 7:45 ás 8:00 da manhã, das 14:00 ás 14:15 da tarde e a noite era das 19:45 às 20:00... se eu não me engano.
Minha mãe me visitava todos os dias, no horário de visita, das 16:45 às 17:30. Foi assim durante uma semana.
Todas as manhãs e ligava pro meu namorado, no horário de ligação é claro. 10:50 às 11:20.
Pedi a minha mãe que me comprasse uma flor pra harmonizar o quarto,um vaso lindo... Acabei dando para uma enfermeira, pois não poderia trazer embora, dentro do ônibus, ela me disse por Orkut que deu meu nome a flor. Achei tão meigo.
Bom, eu dispersei um pouco... continuando. Havia (e ainda há) horário para tudo, homens comem antes que as mulheres, mulheres não conversam com homens, homens não conversam com mulheres. Mas eu como gosto de conhecer, tive minhas "escapulidas" e sempre conversava com um ou outro.
Eu tomava um antidepressivo que me engordou, me deixou com sono, e tudo era gostoso, a comida era gostosa, tudo era tão azul. Mas acabei fazendo umas reclamações como dormir demais, enjoos e acabaram mudando minha medicação... quem mudou foi minha psiquiatra, Dra. Patrícia. Comecei a tomar Fluoxetina, remédio bom, voltei a pesar o que pesava antes, meu humor melhorou, claro que o estabilizador de humor me ajudou bastante também, além do mais, todos deveriam tomar esse estabilizador de humor. Nossa! Faz milagres, você ri até da própria tragédia, hahaha!
Na clínica fiz amizades com os enfermeiros, com os médicos, com os psiquiatras, com as cozinheiras, e com as internas... e internos.
Cada pessoa que lá esteve comigo, que me contou sua história e ouviu a minha também, são fantásticas. Todos lá se julgavam normais enquanto todos aqui fora os julgavam feito loucos.
Sueli é o nome de uma moça de 30 anos que eu conheci, ex-bailarina, tem um filho de 7 ou 8 anos, sofreu muito. Sua amizade esta guardada comigo até hoje. Choramos juntas, rimos juntas, tomamos café juntas, tudo juntas. E até bala de café eu aprendi a gostar e toda vez que eu sinto o cheiro de um café passado ou até de uma bala da boca eu sinto o gosto, é dela que eu lembro.
Déborah, Sueli e eu éramos um tripé dentro da clínica.
Havia uma moça com o nome de Luciana, ela estava no SAE (sala de atendimentos especiais), é pra lá que vão as pessoas quando surtam. Ela surtou depois que recebeu a visita da filhinha, não recebia visita de pessoas há muito tempo, segundo outras internas. Ela era vigiada por enfermeiros 24 hrs, levavam comida até seu quarto, a acompanhavam nos exercícios, nas caminhadas, enfim... tudo. Os quartos do SAE eram do lado da enfermaria, e entre eles há uma janela com 30 centímetros aproximadamente de comprimento e 10 de largura, por ali eles entregavam os alimentos e os medicamentos para Luciana. Ela estava a duas semanas surtada já, os enfermeiros não sabiam mais o que fazer. Gritava enfurecidamente a noite como em filmes de terror. Ela olhava as pessoas passarem através da minúscula janela, e para cada uma delas cantava uma música diferente, na maioria das vezes Bob Marley. Num dia quando os enfermeiros entregaram-lhe a comida através da janela, Luciana jogou o mesmo para o lado da enfermaria, sujando documentos e outras coisas. Logo após os enfermeiros deram vários mata-leões à ela, o que fazia com que a clínica pudesse dormir tranquila. Quando acordei um dia para tomar café da manhã, olhei pela porta entre aberta e pude ver Luciana dopada, com seus pés e mãos amarrados fortes na cama, alimentada por soro e usando fraudas. Foi uma das piores coisas que eu pude ver.
Passou uma semana, dia 15 era aniversário de mamãe. Os internos tem direito a passar um final de semana com a família, dependendo o comportamento, é claro. Consegui passar o aniversário de mamãe com ela. Fomos pra Palhoça num hotel em que ela estivera hospedada, fui na sexta e voltei no sábado. Passeamos juntas por Florianópolis, ela chorava e eu também. Eu chorava quando ouvia minha irmã, quando lembrava de casa, quando falava com parentes e do erro que eu havia cometido.
Mesmo sem muito dinheiro ela tentava me mimar com as coisas que eu pedia. Comprei um presente pra Sueli, pra sempre que usasse lembrasse do quão é valiosa nossa amizade.
No sábado, dia 16, meu namorado e sua família foram me ver. Todos aceitaram naturalmente a minha doença. Foi um dia muito bom para nós. Almoçamos todos juntos e ficamos conversando a tarde inteira, perto da praça da figueira.
Eles foram embora as 15:00, quando começou a garoar. Eu tinha que estar na clínica as 17:00.
Eu e mamãe pegamos a mala e em seguida pegamos o ônibus pra eu poder chegar a tempo na clínica.
Cheguei e fui bem recebida, as enfermeiras perguntavam de como tinha ido meu dia e perceberam que eu tinha alargado mais a orelha, passando de 10 para 12 mm em cada uma.
No dia seguinte Sueli e Déborah haviam chego na clínica, eu estava com muita saudades delas. Logo de cara entreguei o presente pra Sueli, um colar feito por uma índia peruana. Sementes coloridas. Ela adorou o presente e sempre quando conversamos diz que quando o usa lembra de mim.
Neste dia mamãe teria que ir embora para trabalhar. Eu fiquei sem visitas. Eu chorava, me deprimia, dormia no horário de visita muitas vezes, ou esperava encontrar alguém pra conversar. Sueli pediu pra sua mãe ir no horário da visita masculina que era um pouco antes, assim me fazia companhia. Passava a maior parte do tempo escrevendo também, coisas sem nexo, mas era só como passatempo.
Na quinta-feira, dia 21, eu conheci um garoto com nome de Bruno, era filho de uma interna. Cabelos longos, loiros e um olho de cada cor. Cego de um deles. Mas isso não importa. Menino assertivo, atraente, de bom gosto. Déborah e Sueli me disseram o quão vermelha eu havia ficado quando dei as costas e ele foi embora, a taquicardia começou, as pernas bambolearam, o suor tomou conta das mãos, fumei dois cigarros, um atrás do outro. Nervosismo demais.
Conversamos até hoje.
Esperei que ele viesse na sexta-feira visitar a mãe, não foi. No sábado eu estava de malas prontas para ir embora. A mãe de Bruno conseguiu pegar uma "folguinha" no mesmo final de semana, esperei com que ele fosse buscá-la, não foi.
Mesmo não podendo ter contato com os homens eu fiz questão de abraçar um por um, desejar boa sorte e dar tchau. Etiene era um dos homens que estava na clínica, ele está pulando de clínica em clínica fazem 12 anos, a família nunca o chama pra passear, ou sequer recebe visita. Os homens não recebiam alta pra poder ir passar o final de semana com seus familiares, pois sempre que saiam da clínica acabavam não voltando ou usavam drogas.
Etiene com o copro todo trêmulo pegou meu caderno e minha caneta e escreveu algumas coisas para eu ler durante a viagem e nunca mais esquecer daquilo, eram frases de Janis Joplin.
Lembro-me que perguntei a ele se estava com frio, pois chovia aquele dia e seu corpo estava molhado, ele fez um negativo com a cabeça e logo em seguida me respondeu o porque. Me disse que o tremor no corpo era efeito da medicação. Ele mal conseguia escrever, parecia uma criança aprendendo de como fazê-lo. Foi uma das coisas que mais me marcou.
No dia em que vim embora, não pude dar tchau a Sueli nem a Déborah. Sueli pegou um dia antes de "folga" e foi para casa com sua mãe e Déborah tinha uma consulta com seu psiquiatra em Curitiba.
Na noite anterior escrevi uma carta para cada uma.
Sinto falta de todas as pessoas que conheci, de todas as histórias que ouvi. Sinto saudades das enfermeiras, da cama dura... Até da comida ruim.
Eu posso lhe dizer o que é uma clínica psiquiatrica, o que ela pode te mostrar, o que você pode aprender, quais os riscos que você corre e quais metas você quer ter logo depois que sai.
Foram os 15 dias mais incríveis e inesquecíveis que eu tive em toda a minha vida, do qual eu tive que sofrer na pele pra poder ver que o mundo não é tudo aquilo que as pessoas acham que é, que a clínica não é nenhum bicho de sete cabeças, que não é nenhum bicho de uma cabeça só.
Que tem muito o que se aprender e tão pouco tempo para se viver.